15/02/2009

Vida de cão


O carro chiou, as rodas a protestarem em voz alta a curva apertada.

O bicho, coitado, depois de tanto tempo a perceber que era mais seguro atravessar na passadeira e mais tempo ainda para descobrir que a passadeira não era sempre igual (umas vezes tinha um apito que fazia parar as coisas - embora se mantivessem a rugir baixinho, próximo - outras vezes nem parecia que tinha riscas) assustou-se. Deu um salto para a frente e foi por um cabelo que o carro não lhe passou por cima.

Esqueceu imediatamente o sucedido, tinha a certeza que tinha atravessado as riscas na altura certa, a coisa é que não se comportara como devia. Não interessava, havia assuntos muito importantes a considerar, como por exemplo estar na altura do gordo do restaurante vir por os sacos na rua.

Cheiravam tão bem, aqueles sacos! Era estúpido meterem aquilo nas caixas-que-nunca-se-abrem mas as pessoas são muito estranhas, não valia a pena pensar nisso. O gordo do restaurante também cheirava bem, a molho de carne, manteiga e outras coisas. Além disso tinha sempre comida para lhe dar, era importante estar à porta quando vinha guardar os sacos que cheiravam bem nas caixas-que-nunca-se-abrem.

Ultimamente o gordo do restaurante tinha também um cheiro estranho, um odor desagradável que o cão não identificava e que lhe trazia inquietação; mas havia sempre comida de modo que continuava a vir. Era muito importante, a comida, era muito, muito importante.

Chegou à porta e sentou-se. O gordo havia de vir.

Olhou em volta, um pombo saltitava a meia distância. Não se levantou, já sabia que não o apanhava; os pombos eram muito interessantes, nunca tinha apanhado nenhum mas de certeza que saberiam bem.
Uma mulher andava muito depressa em sua direcção - desviou-se para próximo da parede para ela passar, as pessoas eram muito estranhas e algumas eram perigosas, era muito importante estar com atenção.

Estava com fome, o tempo estava certo. O gordo havia de vir, com comida.

A porta abriu-se e o gordo veio, com dois grandes sacos que colocou nas caixas-que-nunca-se-abrem. Os sacos cheiravam bem, muito bem, como sempre, era uma pena aquilo das caixas-que-nunca-se-abrem.

O gordo entrou e tornou a sair com a comida. Deitou-a para cima de um papel, como sempre e a comida cheirava bem, muito bem. Comeu tudo, delicioso, mesmo delicioso, é pena não haver mais mas abanou o rabo em agradecimento e o gordo sorriu. O odor desagradável estava mais forte, espalhava maior inquietação, o gordo estava menos gordo, teria alguma coisa a ver?...

O gordo voltou a entrar e a porta fechou-se. Era tempo de ir ao jardim perseguir os pombos e ouvir o velhote de casaco preto a rir-se.

Havia três sítios com riscas para passar e no fundo dele a inquietação levantou-se: as coisas portar-se-iam bem?

11/02/2009

Calcutá


A Maria era uma rapariga tranquila.

Por qualquer genética razão, era difícil o sangue ferver-lhe nas veias; estranho que possa parecer, controlo era uma palavra desconhecida para ela. Não precisava - mantinha-se sempre calma, reservada, racional e pacífica, fosse qual fosse a situação. Não havia nada que penetrasse a carapaça da sua tranquilidade, nunca havia necessidade de se controlar porque nunca a sua natureza clamava por acção.

Os outros julgavam-na fria e distante mas estavam enganados; ela sentia tudo muito bem, metia-se na pele de todos e sentia-lhes as dores, dúvidas e desesperos; tal coisa não lhe afectava o comportamento calmo e pacífico, antes o ampliava pela compreensão da diversidade do sentir.

Uma vez, uma suposta amiga de longa data rompera com ela porque "Eu não aceito tamanha passividade, é necessário lutar contra a iniquidade, quem nada faz é conivente!"; nessa altura, pela primeira e última vez, tentou explicar a sua natureza: "Teresa, se a lei for olho por olho, acabamos num mundo de cegos!"*. Não resultou, a Teresa afastou-se zangada e o mundo de Maria ficou mais solitário.

Maria sabia que se de facto fosse como gostaria de ser não teria a vida que tinha, teria ido para Calcutá, adoptaria vinte crianças tristes ou passaria o dia a ajudar doentes solitários; assumia o seu egoísmo tentando, dentro dele, ser o melhor possível. O lamento de não ser o que gostaria convivia diariamente com ela, de forma que aprendera a ignorá-lo embora consciente da sua presença.

Maria era tranquila mas não espalhava tranquilidade, antes espalhava inquietação. Quando alguém lhe fazia notar que estava sol, instintivamente ela respondia: "- Mas além está a chover...". Se alguém morria ela lembrava-se dos bebés, se alguém nascia ela lembrava-se dos velhos; andava assim sempre em contra-ciclo, uma coisa muito irritante.

Toda a gente considerava Maria um rochedo, uma pedra firmemente ancorada que nada podia abalar e que por isso mesmo, era um cais seguro; ela própria se considerava assim. Não lembrava a ninguém nunca que alguma vez Maria necessitasse de ajuda, Maria e necessidade de ajuda eram naturalmente exclusivos, como o sol e a chuva... Maria era uma forasteira da vida, incólume, sem cor, alheia, sem cheiro ou ânsia.

Uma vez Maria balançou, num conjunto de circunstâncias que conseguiu a improvável combinação que premia o botão escondido; ninguém realmente percebeu a gravidade do balanço, embora percebessem a estranhíssima falta de tranquilidade. Os dias passaram, a tranquilidade voltou, os mais próximos sossegaram aliviados e só Maria se deu conta dos estragos. Tranquila novamente, colocou-os na mesma categoria das crianças tristes e por adoptar... Uma coisa mais a ignorar.

Maria não era simpática, bonita ou culta; era a sua capacidade de apreender os outros que os atraía magneticamente quando em necessidade e os afastava quando andavam felizes, nessa altura era desagradável a proximidade, dada a inquietação do contra-ciclo. Maria, tranquila, compreendia tanto a necessidade como o desconforto, compreendia a atracção e a repulsa. Maria era dos outros, não dela própria - um pequeno preço a pagar pela recusa em ir para Calcutá, era barato.

Tinha com ela outras presenças, gente que não necessitava dela, gente que sem ruído a acarinhava, pensava nela, dava-lhe prioridade, gente que sacrificava o natural egoísmo e comodidade por ela, gente que a Amava sem querer nada em troca. Maria dava por isto, sorria de vez em quando e tinha consciência de que os amava a eles também, com um amor entranhado que nada tinha a ver com o resto da sua vida... Mas Calcutá erguia-se durante a noite.

Houve um dia em que Maria, tranquilamente, armou um teatro de vida real; chamou nomes à Francisca, disse-lhe que tinha ficado à espera dela, que a sua ausência a tinha marcado, que a Francisca devia ter vergonha em magoar assim quem lhe queria bem e contava com ela; a Francisca, coitada, naquele arrazoado atacante e inesperado lá arranjou forças para remar a sua vida para a frente, considerou que a Maria era afinal um cais pouco seguro e seguiu.
Maria ficou contente e triste: contente porque a Francisca zarpou independente e com força, triste porque a liberdade da Francisca tinha sido adquirida por logro. Maria achava que a manipulação de pessoas era horrivelmente reprovável. "As pessoas", achava ela, "devem ser soberanas. Devem fazer sempre aquilo que querem, porque evolução significa que as pessoas querem as coisas certas. Tudo o mais é engano e decepção". Acreditava firmemente nisso, o que lhe revolvia o estômago e mordia a alma, quando sucumbia à tentação - tão fácil! - de manipular alguém. O estômago rugia, a alma fremia, escondia-se atrás da intenção pura mas tinha pesadelos com crianças de barriga grande e olhos ainda maiores.

Às vezes, a Maria ficava noite dentro a ver um filme de acção. Via o herói a deitar uma bomba e chorava (aquilo mata uns putos de certeza), via o polícia a prender o traficante e chorava (ninguém nasce assim, coitado do miúdo, sem mãe nem pai nem amigos), via o agente secreto a namorar uma bela e chorava (bolas que isto não é vida para ninguém, esta rapariga não sonhou com isto aos 12 anos, de certeza), via o sem abrigo a chamar nomes à polícia e chorava (em outras circunstâncias qualquer de nós podia ali estar!), via isto e aquilo, Calcutá rugia e ela chorava.
Por estas e outras, Maria só gostava de ver filmes sozinha, as suas lágrimas afligiam desnecessariamente os outros que nem compreendiam como ela depois, firmemente, ignorava tudo e retomava a sua tranquilidade inquieta.

Maria não tinha amigos, ninguém suportava durante muito tempo a sua inquietação. Ao fim de um tempo o contra-ciclo começava a cobrar paciência e tranquilidade aos outros e esse era o princípio do fim. Ela sofria de cada vez que constatava o facto - ao longo dos anos o abandono repetia-se sem que nunca quem se afastava se despedisse. Às vezes voltavam, fugidios, pois as Sortes tinham sido maldosas e ela era um Porto de entrada franca; mas era sempre uma hospedagem passageira de quem procura uma noite de sono seguro para prosseguir o seu caminho. Maria compreendia e triste, pagava o dízimo a Calcutá.

Já com muitos anos, Maria atirou-se da ponte. Até hoje, ninguém compreende tal loucura, uma balzaquiana tão tranquila! Houve burburinho, claro, gente a congeminar amores infelizes, humores, hormonas, segredos, menopausa, genética desiquilibrada... A ninguém ocorreu Calcutá. Quem chegou mais próximo foi um miúdo que mal a conhecia, ao dizer alto (as crianças podem não ter a noção do decoro mas têm a noção do óbvio) no funeral:

- Ó Mamã, não chores! Eu acho que ela estava sempre triste, agora já não está triste, isso é bom, não é?

É. Calcutá cobra as suas dívidas mas dívidas pagas são paz de espírito.

*Dalai Lama

08/02/2009

Cenas da vida (ir)real

Chovia a potes.
A água escorregava pela calçada, pelo jardim, pelas janelas e ia formando pequenas poças aqui e ali.
Com um suspiro, Margarida pegou no saco vazio das compras e virou-se para o marido:
- Vamos ao super então... Já são 11 horas e pelos vistos o tempo não vai permitir mais nada!

O pequeno supermercado estava atulhado de gente.
Pelos vistos, todos os vizinhos tinham tido a mesma brilhante ideia de aproveitar a chuvosa manhã de domingo para fazer as compras do almoço.

Após as voltas necessárias e com o cesto cheio, o marido dirigiu-se a uma caixa e ficou a aguardar a sua vez.

Margarida deixou-se ficar para trás, entretida com uns cartazes de promoção de bacalhau. Passado pouco tempo, dirigiu-se igualmente às caixas.

Agarrou-se ao braço do marido, e fez-lhe uma festa como tinha o costume, olhando ao mesmo tempo para o carrinho vizinho na fila, de um casal de velhotes compradores que olharam para ela embasbacados. Sem perceber qual a razão, Margarida levanta a cabeça e dá um grito.

O marido, não era o marido. Era um homem bastante mais velho, de mesma estatura e com um casaco da mesma cor. Que a olhava igualmente pouco à vontade...sem saber muito bem o que dizer.

Procurando o marido com os olhos, Margarida corre para ele, meio envergonhada, meio risonha, no meio das gargalhadas de quem estava na fila e que tinha percebido e acompanhado a cena.

Ela conta-lhe o sucedido, pois ele de nada se tinha apercebido, e o marido, brincalhão, ri-se e diz, para o velho homem que tinha sido confundido e que continuava a aguardar a sua vez na caixa mais adiante:
- Olhe, garanto-lhe que é uma mulher excelente. Mas para já, não lha posso dispensar.

E para ela, rindo-se:
- Se fosse eu que te tivesse confundido com outra mulher num supermercado que dirias tu?

E que julgam vocês que ela respondeu?

- Era o que mais faltava! Ficava furiosa obviamente! Até porque tu és muito mais alto do que eu, e vias-me logo de cima portanto não me podias confundir com ninguém! Eu quando olhei para cima vi logo que me tinha enganado!

Agora digam-me lá, se não é esta tirada uma pura maravilha do engenho feminino!
Toda e qualquer semelhança com pessoas da vida real não é coincidência.

07/02/2009

Cenário urbano


A porta do carro da frente abriu-se e uma jovem muito bem vestida e de botas com salto de agulha saiu furiosa e começou a insultar o condutor da frente; da boca bem pintada saíam palavrões dignos de um carroceiro irritado. O condutor da frente também saiu do carro, um homem maduro e com cara de poucos amigos.

A rapariga dos saltos de agulha deu um pontapé na roda do carro da frente e o homem avisou-a:

- Ó grande vaca, se pensas que eu não bato em mulheres, andas enganada!

Joana abanou a cabeça, atónita. O João riu-se.

- Achas que se vão pegar à pancada?
- Sei lá! Mas ela bem merecia...
- Mas é uma rapariga!
- E então?
- Tu eras capaz de me bater?!
- A ti não mas não é por seres rapariga, é porque não te portas assim.
- Queres dizer que se fosses tu ali à frente batias-lhe?
- Claro! Ela deu um pontapé no carro, não deu?
- Foi no carro, não foi no homem...
- É a mesma coisa.

O semáforo mudou de cor e imediatamente se fez ouvir a cacofonia das buzinas, protestando contra a cena que antes entretivera os condutores mas que agora lhes impedia a passagem e atrasava o destino.

Joana sentia um frio desagradável a escorrer pela espinha mas não disse mais nada. Não queria saber mais.