27/05/2009

Fim


A rapariga lá estava, desconjuntada no passeio público, nuns preparos que nunca acreditaria em vida: uma perna para um lado, a outra para o outro, a saia sem preceito deixava ver as cuecas molhadas por falta de controlo biológico no momento de tensão extrema, um espectáculo triste que nunca teria permitido se o soubesse.

Á sua volta borbulhavam curiosidades, uma coisa para contar no dia seguinte, quando fossem tomar o café da manhã no emprego. Ninguém estava ali para ajudar - a miúda estava claramente para além de qualquer ajuda neste mundo, imóvel e descomposta na praça pública.

A polícia chegou. Afastaram o público em geral, olharam para cima à procura da janela, mediram e anotaram todos os centímetros. Também eles não estavam ali para ajudar, só para tomar conta da ocorrência e descobrir, se possível, se tinha sido desgosto de amor, assassínio ou uns copos a mais.

A ambulância veio. Conferenciaram com a polícia e um tipo gordo e de cabelo gorduroso tomou notas e assinou a certidão de óbito. Mal olhou para ela, tão obviamente morta da queda. Mas também ele não estava ali para ajudar; precisava de lá estar, o ordenado ao fim do mês punha o pão na mesa da família e pagava a educação dos filhos, um par de gémeos alegres e cheios de vivacidade.

Deixaram inscrita na via pública uma silhueta a giz, retrato obsceno da sua pose involuntária.

Tarde na noite, o cão passou por ali. Cheirou e voltou a cheirar, ganiu sabe-se lá porquê, avançou, voltou para trás e por fim levantou a perna e urinou no giz, apagando a sua figura patética e sem defesa.

O mundo ficou mais pobre, nesse dia. Ninguém notou e o cão não sabia, um cão não percebe nada destas coisas. Porque terá ganido o cão?

17/05/2009

Uma como nós Chap. 1 - "Tadito"

Miau...
Antónia pousou o saco das compras no chão e olhou para a criatura escanzelada que se tinha aninhado à porta de casa.
O bicho, escanzelado, famélico, enrolou-se-lhe nas pernas com a cauda em riste, e voltou a soltar o mesmo queixume.
Com um encolher de ombros e um supiro, Antónia pegou no bicho com uma mão e com a outra no saco das compras que tinha pousado, num daqueles impulsos de que por vezes nos arrependemos. E entrou em casa.
Resmungando ao mesmo tempo com o bicho, abriu a porta do frigorifico e tirou o pacote de leite, deitando em seguida algum num pires, que empurrou com gestos bruscos na direcção do animal.
Esta sua mania de se ocupar dos coitados ainda lhe ía sair caro. Para já, a sua noite de televisão, com o novo programa de descoberta de celebridadas, estava seriamente comprometida.
Antónia voltou a resmungar enquanto o bicho se lambia os bigodes satisfeito. E mentalmente, começou a fazer a lista de coisas que ia ter que fazer por causa da chegada do gato à sua vida (veterinário, vacinas, antipulgas, comida...) Suspirou de novo. Ía ter de voltar a sair pela certa. Que chatice...
Antónia era viúva. O marido tinha morrido cedo e, quando pensava nele, era uma raiva surda que lhe enchia o peito. O malandro...
Tinha sido um óptimo marido. Atento, inteligente, carinhoso, amante... e era justamente aí que residia o problema. Quando morreu, deixou um enorme vazio. E Antónia tinha-lhe raiva por isso, por ele ter partido tão cedo e deixado aquele vazio enorme no seu peito. Chegava a pensar que por vezes a vida seria agora mais fácil se ele tivesse sido mau marido. Assim poderia pensar nele com carinho, visto que já estava morto. É tão fácil pensar bem dos mortos que foram más pessoas! É assim uma espécie de lei de compensação.
Mas o marido dela, não. Tinha sido uma espécie de metade dela, e quando pensava nele, de raiva, falava-lhe em voz alta e descompunha-o com todos os palavrões de que se lembrava por ele se ter ido embora sem ela.
Como as pessoas a quem se amputa uma perna e que ainda sentem comichão no membro inexistente... E coçam a prótese.
Antónia voltou a suspirar enquanto olhava para o gato. Tadito... Tadito era um bom nome para o bichano. Fazia-lhe lembrar o médico que a seguia no Centro Farmacêutico Experimental que ela frequentava. Tinha assim os mesmos olhos doces e os mesmos ossos angulosos. Até o bigode era similar, espetado e ralo.
Antónia frequentava o Centro Farmacêutico Experimental desde a morte do marido.
De facto, tinha sido a raiva que a tinha levado a frequentar o Centro.
Eles precisavem de cobaias, e pagavam bem.
Ela precisava de uma escapatória, de uma justificação para seguir o caminho do marido, segui-lo aonde quer que ele estivesse, mesmo que esse sítio fosse o nada. E como não conseguia pôr fim à vida, assim simplesmente, até porque ainda a amava demasiado, achou que ser cobaia era um bom compromisso.
Sem contar que lhe dava um óptimo complemento monetário.
O médico que a seguia era simpático. Ela nunca se lembrava bem do nome dele, tinha assim um nome fora de vulgar, de outros tempos, tipo Valentino... ou seria Virgílio? Na cabeça dela era mais um "Tadito"... Atencioso, preocupava-se com ela e achava um pouco estranho ela frequentar o Centro, pois estava habituado a outro tipo de pacientes. Pessoas mais deprimidas, menos interessantes, mais desesperadas... Antónia sabia que para ele, ela era diferente. Ele gostava sinceramente dela e tinha sempre medo de que, quando a voltasse a ver, ela viesse com alguma maleita que passaria a figurar nos "efeitos secundários" de uma das muitas drogas que o Centro, por intermédio de tantas outras Antónias, testava. Enquanto lhe fazia as análises quinzenais de rotina, iam conversando sobre tudo e mais alguma coisa.
E pouco a pouco, Antónia sabia-o, para o médico, a conversa foi-se tornando um dos efeitos secundários das visitas quinzenais de Antónia.
Tadito... murmurou ela enquanto olhava para o gato e se lembrava do médico.
Numa concordância com o nome escolhido, e num salto ágil como só os gatos sabem dar, o bichano saltou-lhe para os braços.
Pois sim. Num encolher de ombros, pegou na mala e voltou a sair com o gato na mão.
- Vamos começar pelo veterinário, ok ? Porque se vais viver na minha casa, nem penses que aceito pulgas como hospedeiras.
O gato ronronou em resposta.
(Continua)