27/12/2009

São rosas, Senhor.

A Fada sentou-se na folha verde. Como todos os dias, tinha andado num virote a espalhar Felicidade entre os Homens, desgraçada raça sempre tão triste.

A folha verde era muito maior que ela. Deitou-se e sorriu; estava cansada, sim, mas valia a pena. Tanta gente que era agora mais feliz!

Morreu sem dar por nada, quando a mulher a esmagou com a pequena pá de ferro:

- Estupores dos bichos, dão-me cabo das rosas.

11/11/2009

A caixa de Pandora

As duas estavam sentadas num muro. Uma mulher velha e uma mulher jovem.
As mãos, quase juntas não se chegavam a tocar e no entanto, já haviam estado dadas.
As duas fixavam o horizonte, mas os pensamentos eram diferentes.
A jovem olhava para fora, a velha olhava para dentro.

A jovem pensava em toda a beleza que via.
A velha, em toda a tristeza que sentia.

A jovem imaginava o que ainda a esperaria.
A velha, a caixa que se abria. A caixa de Pandora.

Todas as experiências vividas. Todos os rancores tão guardados. Tudo o que ela pensava ter tão bem enterrado, fechado a sete chaves, surgia em catadupas, com uma raiva incontrolável. Pior ainda. O mal que o tempo não destrói, o tempo distorce ou aumenta...À raiva sucedia a tristeza, à tristeza sucedia a raiva, raiva da impotência em fazer partir tudo isso. E a beleza do horizonte escorregava pelos olhos que olhavam sem ver. Esta sua mania de tudo analisar, de tudo dissecar, seria isso que a tornava tão triste e simultaneamente tão furiosa?

Chegada a este ponto, Margarida fechou o livro e olhou para o muro.
Neste não se encontravam sentadas duas pessoas mas apenas uma, uma figura feminina, de meia-idade talvez.
Impossível saber no que a mesma pensava...

08/10/2009

Sorriso


Sorri.
A Vida e o Tempo nada notarão
Mas as rugas da tua cara
Terão outra forma.

Sorri.
O Mal e o Desespero nada notarão
Mas os que virem o sorriso
ficarão com esperança.

Sorri.
Tudo o resto fica na mesma mas
Os que tu amas e te amam a ti
Ficarão aliviados.

23/09/2009

Intervalo


Hoje o sol põe-se em silêncio,
A Vida vê a pausa, inquieta,
E a Morte ri-se, lá do Outro lado:
- Querias, não é? Mas hoje não estou para isso.
Os segundos passam, lentos, seguros,
Tudo continua como antes, imutável
mas o Homem chora pérolas mais salgadas
e o seu desespero é mais amargo e duro.
Não há calculadora
capaz de fazer estas contas.

17/06/2009

Ana


Que chatice, hoje teria de lavar a loiça, o pai andava outra vez com aquele ar inquisitivo.

Os pais eram boas pessoas, claro que eram - mas tão chatos! A vida não se resume a quem lava a loiça, caramba! Porque diabo aqueles dois não eram felizes? Tinham tudo para isso - dinheiro, casa, via-se que gostavam um do outro; mas não eram felizes. Não se entendiam, era o que era, não se percebiam um ao outro.

Isso nunca lhe aconteceria, nunca, nunca! Era coisa decidida desde os 11 anos, quando se apercebeu que nem tudo eram rosas na vida dos pais. De vez em quando, mais frequentemente nos últimos tempos, havia uma expressão ou um silêncio que lhe recordavam essa jura e era renovada. NUNCA teria aquela vida.

Claro, estas coisas têm sempre contra-partidas; teria de lavar a loiça, sim, só depois da ansiedade do pai acalmar é que poderia ir sair com o Rui. O Rui percebia o que ela dizia, ás vezes até percebia o que ela não dizia, era espantoso. Claro que era um bocado mais velho que ela mas que importância tinha isso, além desta compreensão que o João, o Manuel e o Paulo não tinham mesmo? O Rui era diferente, decididamente.

Sorriu. Ia levar a saia preta, dava-lhe aquele ar sofisticado e atraente que o Rui tanto gostava... E a blusa vermelha. Fazia um peito belíssimo, aquela blusa!.

Disse: "deixe estar, mãe, hoje lavo eu a loiça!" e sentiu cravado nas costas o olhar apreciador do pai. A mãe disse "sim" e afastou-se.

Que se passaria com a mãe? Ultimamente andava distante, não parecia bem a mesma. As conversas ao jantar eram estranhas, com ela a chatear o pai por causa de coisas que ele nem percebia, os sapatos do João, o café que não prestava, coisas assim. Nunca teria conversas destas com o Rui - trataria de tudo e depois informava-o e pronto. Era muito mais simples!

A mãe andava um bocado esquisita, realmente. A chatear o pai com os exames do João?!? O João era parvalhão até dizer chega mas sempre tinha tirado boas notas. Aliás, nem poderia ser de outra maneira, a mãe e o pai teriam um ataque se o seu querido Joãozinho tirasse menos de 14 a qualquer coisa... Seria um drama, bem maior do que quando ela tirou 12 a Português. Sim, porque ela era ela e o querido Joãozinho era outra coisa. Tanto melhor, não a chateavam. Se tivesse filhos nunca faria tais distinções, a mãe parece que não vê isto.

Mas ultimamente andava esquisita, não sabia bem dizer porquê. O jantar continuava a ser bom, todos os dias a mãe lhe perguntava pelos deveres, todos os domingos arranjava maneira de introduzir o assunto e lhe perguntava pelo coração... Fazia o que sempre tinha feito, sim, mas havia qualquer coisa diferente.

Ainda não lhe tinha falado do Rui. Será que a mãe tinha adivinhado? Ela parecia que adivinhava as coisas, às vezes até fazia medo. Mas não, quando ela tinha andado com o parvo do João, ela tinha adivinhado e não tinha reagido assim, tinha sido chata como o caraças. Até tinha razão, reconheceu, mas tinha sido tão chata! Agora era diferente. Fazia as mesmas perguntas de sempre mas era muito mais fácil dar a volta - parecia que tinha deixado de adivinhar. Sorriu novamente - ainda bem!

O pai também não andava lá muito bem disposto. Olhava para ela e para o João com uns olhos! Parecia estar à procura de qualquer coisa, um sinal, ela sabia lá. Mas não era coisa boa. Normalmente a mãe percebia e fazia com que ele dirigisse a atenção para outro lado. Mas como a mãe também andava muito esquisita, ultimamente sentia a inquisição do pai muito mais vezes. Mais incomodativa - às vezes até parecia que ele estava desapontado por ela ter boas notas!
Há uma semana que o pai esfregava o cabelo e olhava para a mão a seguir. Caramba, com um cabelo assim porque diabo faz ele aquilo? Uma vez tinha falado com a mãe e ela tinha-lhe dito que o pai tinha medo de ficar careca mas caramba, antes careca que com aquele cabelo.

A culpa era da mãe. Se não andasse tão aluada sabe-se lá com quê, já tinha feito o pai voltar ao normal. Mas não, ela andava assim diferente, a afastar-se com um seco "sim" quando ela até lavava a loiça. Será que se iam separar? Na turma toda só havia 2 pessoas com os pais não separados, ela e a Joana. Se calhar vão-se separar.

Ficou repentinamente angustiada. Sim, deve ser isso. Isso explica porque anda a mãe tão estranha e o pai tão infeliz. Deve ser isso e a culpa era sua, nunca tinha reparado mas ultimamente nem lhes ligava nem nada, não conversava com eles, fugia a sete pés daquela casa.

Era por causa dela que eles se iam separar, tinha a certeza. Tinha de falar com o João, será que ele tinha reparado? Ele era parvo até dizer chega mas percebiam-se bem nas coisas importantes - não se é gémeo à borla, apesar de tudo.

Olhou para o pai. Ele olhava para a mãe com um ar tão infeliz! Caramba, mas porque é que ela não via aquela expressão?

14/06/2009

Joaquim


O tipo gordo e de cabelo gorduroso - Joaquim Freitas e Oliveira, de seu nome completo - entrou na ambulância absorto em pensamentos. Sentia-se infeliz.

Não era a rapariga desconjuntada que o perturbava, já tinha visto tantos jovens assim! Ao princípio isso nem o deixava dormir, agora estava habituado. Tinha aprendido a não olhar muito de perto, porque os sinais da sua vida também desconjuntada o afectavam muito mais que a morte, a morte era coisa natural. Mas uma vida precocemente desconjuntada, tanta vez gritada nos sinais físicos a que a sua profissão o aconselhava a reparar, isso ainda o perturbava. Aprendeu a mal olhar, era melhor.

Não, Joaquim não se preocupava com o corpo triste a quem certificara a morte. Era a vida que o fazia infeliz, mais concretamente a sua própria vida. As coisas não iam bem em casa. Caramba, será que a Julia não via que estava cansado, desmoralizado numa profissão que não era o que sonhara? Será que não percebia que a obrigação de prover às necessidades de mais 3 pessoas além dele tinha morto os seus sonhos?!?

Sempre a exigir, sempre a exigir... Um dia eram sapatos para os miúdos - a dobrar, que raio, as coisas para os miúdos eram sempre a dobrar! - no outro uma máquina de café... Caramba, que mal tinha a antiga? Há 15 anos que bebiam daquele café, era bom!
E agora, andava silenciosa e de ar absorto, nem sequer o chateava para ir às reuniões de pais. Isto não era natural.

Joaquim acachapou o cabelo com a mão, nunca tinha reparado que era gorduroso. Pegou no pequeno espelho do kit da ambulância e viu: bolas, o cabelo estava horrível! Teria sempre assim o cabelo? Não era falta de banho, tinha lavado a cabeça no dia anterior, lavava sempre a cabeça de 2 em 2 dias pois tinha ouvido dizer que lavar todos os dias levava á calvície. Mas assim não, palavra que a cabeleira parecia que não via sabão há 1 semana. Pensou que devia perguntar ao barbeiro. Eles lá sabem, é a profissão deles - e arrumou o assunto na sua cabeça.

Pensou nos filhos. Os adolescentes deviam dar problemas, toda a gente sabe que os adolescentes dão problemas. Ele tinha dois: porque diabo não lhe davam problemas?!? Sempre tão certinhos, a Ana e o João.

Boas notas. Bem educados, pediam sempre licença antes de abandonar a mesa.
Ajudavam em casa, a Ana muita vez lavava a loiça, o João lavava o carro todos os fins-de-semana.
Bons miúdos. Ele e a Júlia nunca tinham sido chamados à escola, nem na primária nem no liceu, e eles já estavam no fim do liceu. Bons miúdos. Seriam demasiado bons miúdos? Toda a vida ouviu dizer que os adolescentes davam problemas - porque é que os seus não davam?

Se calhar era por causa da Júlia. Era extraordinária, a Júlia. Havia sempre roupa lavada nas gavetas, comida boa e quente a horas certas, certificava-se todos os dias que as crianças tinham os trabalhos de casa feitos. Nem quando ele esteve desempregado lhes faltou nada. O Joaquim não fazia idéia como mas a verdade é que em casa nada mudara nesses meses de aflição: refeições fartas e quentes a horas certas, roupa lavada na gaveta, um sorriso na cara.

Era isso - actualmente faltava-lhe o sorriso. Ela sempre sorrira, sempre! E quando ele esteve desempregado, nunca se tinha apercebido de sapatos ou máquinas de café, ela sempre dera conta do recado. Porque diabo vinha ela agora com estas conversas?!?

Ultimamente ela não sorri. Joaquim sente-se cada vez mais infeliz. Ele está igual ao que sempre foi, porque é que a Júlia não sorri?!?

27/05/2009

Fim


A rapariga lá estava, desconjuntada no passeio público, nuns preparos que nunca acreditaria em vida: uma perna para um lado, a outra para o outro, a saia sem preceito deixava ver as cuecas molhadas por falta de controlo biológico no momento de tensão extrema, um espectáculo triste que nunca teria permitido se o soubesse.

Á sua volta borbulhavam curiosidades, uma coisa para contar no dia seguinte, quando fossem tomar o café da manhã no emprego. Ninguém estava ali para ajudar - a miúda estava claramente para além de qualquer ajuda neste mundo, imóvel e descomposta na praça pública.

A polícia chegou. Afastaram o público em geral, olharam para cima à procura da janela, mediram e anotaram todos os centímetros. Também eles não estavam ali para ajudar, só para tomar conta da ocorrência e descobrir, se possível, se tinha sido desgosto de amor, assassínio ou uns copos a mais.

A ambulância veio. Conferenciaram com a polícia e um tipo gordo e de cabelo gorduroso tomou notas e assinou a certidão de óbito. Mal olhou para ela, tão obviamente morta da queda. Mas também ele não estava ali para ajudar; precisava de lá estar, o ordenado ao fim do mês punha o pão na mesa da família e pagava a educação dos filhos, um par de gémeos alegres e cheios de vivacidade.

Deixaram inscrita na via pública uma silhueta a giz, retrato obsceno da sua pose involuntária.

Tarde na noite, o cão passou por ali. Cheirou e voltou a cheirar, ganiu sabe-se lá porquê, avançou, voltou para trás e por fim levantou a perna e urinou no giz, apagando a sua figura patética e sem defesa.

O mundo ficou mais pobre, nesse dia. Ninguém notou e o cão não sabia, um cão não percebe nada destas coisas. Porque terá ganido o cão?

17/05/2009

Uma como nós Chap. 1 - "Tadito"

Miau...
Antónia pousou o saco das compras no chão e olhou para a criatura escanzelada que se tinha aninhado à porta de casa.
O bicho, escanzelado, famélico, enrolou-se-lhe nas pernas com a cauda em riste, e voltou a soltar o mesmo queixume.
Com um encolher de ombros e um supiro, Antónia pegou no bicho com uma mão e com a outra no saco das compras que tinha pousado, num daqueles impulsos de que por vezes nos arrependemos. E entrou em casa.
Resmungando ao mesmo tempo com o bicho, abriu a porta do frigorifico e tirou o pacote de leite, deitando em seguida algum num pires, que empurrou com gestos bruscos na direcção do animal.
Esta sua mania de se ocupar dos coitados ainda lhe ía sair caro. Para já, a sua noite de televisão, com o novo programa de descoberta de celebridadas, estava seriamente comprometida.
Antónia voltou a resmungar enquanto o bicho se lambia os bigodes satisfeito. E mentalmente, começou a fazer a lista de coisas que ia ter que fazer por causa da chegada do gato à sua vida (veterinário, vacinas, antipulgas, comida...) Suspirou de novo. Ía ter de voltar a sair pela certa. Que chatice...
Antónia era viúva. O marido tinha morrido cedo e, quando pensava nele, era uma raiva surda que lhe enchia o peito. O malandro...
Tinha sido um óptimo marido. Atento, inteligente, carinhoso, amante... e era justamente aí que residia o problema. Quando morreu, deixou um enorme vazio. E Antónia tinha-lhe raiva por isso, por ele ter partido tão cedo e deixado aquele vazio enorme no seu peito. Chegava a pensar que por vezes a vida seria agora mais fácil se ele tivesse sido mau marido. Assim poderia pensar nele com carinho, visto que já estava morto. É tão fácil pensar bem dos mortos que foram más pessoas! É assim uma espécie de lei de compensação.
Mas o marido dela, não. Tinha sido uma espécie de metade dela, e quando pensava nele, de raiva, falava-lhe em voz alta e descompunha-o com todos os palavrões de que se lembrava por ele se ter ido embora sem ela.
Como as pessoas a quem se amputa uma perna e que ainda sentem comichão no membro inexistente... E coçam a prótese.
Antónia voltou a suspirar enquanto olhava para o gato. Tadito... Tadito era um bom nome para o bichano. Fazia-lhe lembrar o médico que a seguia no Centro Farmacêutico Experimental que ela frequentava. Tinha assim os mesmos olhos doces e os mesmos ossos angulosos. Até o bigode era similar, espetado e ralo.
Antónia frequentava o Centro Farmacêutico Experimental desde a morte do marido.
De facto, tinha sido a raiva que a tinha levado a frequentar o Centro.
Eles precisavem de cobaias, e pagavam bem.
Ela precisava de uma escapatória, de uma justificação para seguir o caminho do marido, segui-lo aonde quer que ele estivesse, mesmo que esse sítio fosse o nada. E como não conseguia pôr fim à vida, assim simplesmente, até porque ainda a amava demasiado, achou que ser cobaia era um bom compromisso.
Sem contar que lhe dava um óptimo complemento monetário.
O médico que a seguia era simpático. Ela nunca se lembrava bem do nome dele, tinha assim um nome fora de vulgar, de outros tempos, tipo Valentino... ou seria Virgílio? Na cabeça dela era mais um "Tadito"... Atencioso, preocupava-se com ela e achava um pouco estranho ela frequentar o Centro, pois estava habituado a outro tipo de pacientes. Pessoas mais deprimidas, menos interessantes, mais desesperadas... Antónia sabia que para ele, ela era diferente. Ele gostava sinceramente dela e tinha sempre medo de que, quando a voltasse a ver, ela viesse com alguma maleita que passaria a figurar nos "efeitos secundários" de uma das muitas drogas que o Centro, por intermédio de tantas outras Antónias, testava. Enquanto lhe fazia as análises quinzenais de rotina, iam conversando sobre tudo e mais alguma coisa.
E pouco a pouco, Antónia sabia-o, para o médico, a conversa foi-se tornando um dos efeitos secundários das visitas quinzenais de Antónia.
Tadito... murmurou ela enquanto olhava para o gato e se lembrava do médico.
Numa concordância com o nome escolhido, e num salto ágil como só os gatos sabem dar, o bichano saltou-lhe para os braços.
Pois sim. Num encolher de ombros, pegou na mala e voltou a sair com o gato na mão.
- Vamos começar pelo veterinário, ok ? Porque se vais viver na minha casa, nem penses que aceito pulgas como hospedeiras.
O gato ronronou em resposta.
(Continua)

17/04/2009

Resistência

Durante a infância
O mundo era infinito
e havia esperança

Durante a adolescência
O mundo era enorme
e havia veemência

Durante a juventude
O mundo era grande
e havia de tudo

Durante a idade adulta
O mundo existe apenas
embora já com multa

Durante a velhice porém
o mundo já não existe
e pesa-se sempre a alguém

Ah! O intenso desespero
de já não querer viver
e estar são como um pero!

Pode levar à demência,
este visto permanente
na total impotência

A tristeza essencial
d'uma vida resistente
é que resiste, afinal.

06/04/2009

Finalmente

O rapaz chorava, infelicíssimo.

O seu desgosto era profundo e completo, portanto desesperado. Estava - fisicamente! - incapaz de reconhecer que não é possível manter aquele estado de exaltação eternamente - era jovem e não sabia que as exaltações nunca duram muito tempo. Portanto, estava extremamente infeliz por toda a eternidade, que era a duração do presente.

Toda aquela miséria e desespero eram estranhamente doces; a sua juventude inocente também desconhecia que o sofrimento pode viciar, tal com a excitação, o amor ou mais buriladamente, a heroína.

Levantou-se e com a mão, limpou as lágrimas. Ah! A vida não merecia a pena de ser vivida!

Pegou na caçadeira, entrou pelo colégio adentro e matou tudo quanto viu mexer: não sofreriam como ele, não! Era demasiado doloroso, crianças tão inocentes e frágeis não mereciam tal desespero.

Quando já tinha acabado com todo o sofrimento potencial, apontou a arma para si próprio e premiu o gatilho, matando o sofrimento actual.

Descansou da dor. Finalmente.

08/03/2009

A vida é vingativa


O jovem riu-se. Um riso alegre e contagioso, pleno de alegria de viver.

Bem parecido e sensível, agradava ás mulheres; inteligente, culto e discreto, encantava os homens. A vida sorria-lhe, cheia de promessas. A vida gosta de gente forte.

Casou cedo, nunca se arrependeu. A mulher era frágil - precisamente o que o tinha atraído, a utilidade da sua força protectora - o seu bem-estar sugava todas as forças existentes. As horas do dia e o esforço permanente não eram suficientes para a arrancar aos seus medos, às suas preocupações e às suas tristezas - a delicada mulher tudo vivia com uma estranha e triste resistência mas ele, um homem forte, não aguentava aquela consumição. Das duas uma - ou embarcava numa cruzada mortal ou esquecia o assunto. Aquele tem-te não caias dava cabo de si, o que o fazia admirar mais ainda a mulher e a sua serena resistência... Sim, a mulher esgotava-o mas ao mesmo tempo preenchia-o. Nunca se arrependeu, nunca sequer se apercebeu que havia quem lamentasse a sua condição.

Ela morreu cedo. Antes das forças do marido se esgotarem, na sua triste, profunda sensibilidade e serena sabedoria, ela morreu tranquilamente e com tempo suficiente para lhe dizer que o amava. Era a mais pura das verdades e ele nem sonhava que em parte era esse amor o responsável pela sua morte prematura - acima de tudo, ela não queria que ele sofresse e sabia bem o que a ele custava a sua fragilidade. Assim, morreu tranquilamente, com o tempo necessário e suficiente para ele saber que era tão amado - mas sem o desgaste de um prolongado e inglório esforço.

A sua sensibilidade, inteligência e cultura, juntamente com a vivência daquela mulher doce, impediram-no de sorrir à vida como ela lhe sorria a ele. Deixou passar as oportunidades de escalar a escada do sucesso, vendo-as bem mas sempre preso a qualquer coisa que o impedia de subir - talvez porque alguns degraus da escada tinham cara de gente.
A vida é vingativa, deixou de lhe sorrir e passou a persegui-lo - passavam-lhe debaixo dos olhos inúmeras escadas com degraus de olhos tristes.

Já no fim, um velho de faces marcadas e macilentas com olhos tristes e pensativos, o enfermeiro do lar de velhos onde vivia organizou uma pequena festa de aniversário às suas próprias custas. Foi com certo esforço porque teve de poupar o curto orçamento durantes 2 meses mas gostava do velhote de olhos profundos e sorriso fácil.

Nessa tarde, apagou as velas do bolo oferecido, olhou para o enfermeiro bondoso e riu-se. Um riso divertido e contagioso, que fez sorrir os companheiros e alegrou o enfermeiro. Disse-lhe: "Meu bom amigo, a vida é uma tipa invejosa e ciumenta! Parvos são os homens que julgam que a podem domar". Riu outra vez com o riso cristalino que alegrava as caras desdentadas dos companheiros.

Morreu serenamente nessa noite. A mulher tinha morrido há muito tempo, o filho tinha a sua própria vida dorida, o enfermeiro enredava-se em amores pela criada do hotel ao lado. Amizade era um sonho esquecido da juventude.
Morreu sozinho, como toda a gente.

A Vida continua a sorrir aos jovens alegres. São inconscientes, os jovens - não têm contactos com quem os podia avisar que a vida é vingativa, se calhar ela faz de propósito.

15/02/2009

Vida de cão


O carro chiou, as rodas a protestarem em voz alta a curva apertada.

O bicho, coitado, depois de tanto tempo a perceber que era mais seguro atravessar na passadeira e mais tempo ainda para descobrir que a passadeira não era sempre igual (umas vezes tinha um apito que fazia parar as coisas - embora se mantivessem a rugir baixinho, próximo - outras vezes nem parecia que tinha riscas) assustou-se. Deu um salto para a frente e foi por um cabelo que o carro não lhe passou por cima.

Esqueceu imediatamente o sucedido, tinha a certeza que tinha atravessado as riscas na altura certa, a coisa é que não se comportara como devia. Não interessava, havia assuntos muito importantes a considerar, como por exemplo estar na altura do gordo do restaurante vir por os sacos na rua.

Cheiravam tão bem, aqueles sacos! Era estúpido meterem aquilo nas caixas-que-nunca-se-abrem mas as pessoas são muito estranhas, não valia a pena pensar nisso. O gordo do restaurante também cheirava bem, a molho de carne, manteiga e outras coisas. Além disso tinha sempre comida para lhe dar, era importante estar à porta quando vinha guardar os sacos que cheiravam bem nas caixas-que-nunca-se-abrem.

Ultimamente o gordo do restaurante tinha também um cheiro estranho, um odor desagradável que o cão não identificava e que lhe trazia inquietação; mas havia sempre comida de modo que continuava a vir. Era muito importante, a comida, era muito, muito importante.

Chegou à porta e sentou-se. O gordo havia de vir.

Olhou em volta, um pombo saltitava a meia distância. Não se levantou, já sabia que não o apanhava; os pombos eram muito interessantes, nunca tinha apanhado nenhum mas de certeza que saberiam bem.
Uma mulher andava muito depressa em sua direcção - desviou-se para próximo da parede para ela passar, as pessoas eram muito estranhas e algumas eram perigosas, era muito importante estar com atenção.

Estava com fome, o tempo estava certo. O gordo havia de vir, com comida.

A porta abriu-se e o gordo veio, com dois grandes sacos que colocou nas caixas-que-nunca-se-abrem. Os sacos cheiravam bem, muito bem, como sempre, era uma pena aquilo das caixas-que-nunca-se-abrem.

O gordo entrou e tornou a sair com a comida. Deitou-a para cima de um papel, como sempre e a comida cheirava bem, muito bem. Comeu tudo, delicioso, mesmo delicioso, é pena não haver mais mas abanou o rabo em agradecimento e o gordo sorriu. O odor desagradável estava mais forte, espalhava maior inquietação, o gordo estava menos gordo, teria alguma coisa a ver?...

O gordo voltou a entrar e a porta fechou-se. Era tempo de ir ao jardim perseguir os pombos e ouvir o velhote de casaco preto a rir-se.

Havia três sítios com riscas para passar e no fundo dele a inquietação levantou-se: as coisas portar-se-iam bem?

11/02/2009

Calcutá


A Maria era uma rapariga tranquila.

Por qualquer genética razão, era difícil o sangue ferver-lhe nas veias; estranho que possa parecer, controlo era uma palavra desconhecida para ela. Não precisava - mantinha-se sempre calma, reservada, racional e pacífica, fosse qual fosse a situação. Não havia nada que penetrasse a carapaça da sua tranquilidade, nunca havia necessidade de se controlar porque nunca a sua natureza clamava por acção.

Os outros julgavam-na fria e distante mas estavam enganados; ela sentia tudo muito bem, metia-se na pele de todos e sentia-lhes as dores, dúvidas e desesperos; tal coisa não lhe afectava o comportamento calmo e pacífico, antes o ampliava pela compreensão da diversidade do sentir.

Uma vez, uma suposta amiga de longa data rompera com ela porque "Eu não aceito tamanha passividade, é necessário lutar contra a iniquidade, quem nada faz é conivente!"; nessa altura, pela primeira e última vez, tentou explicar a sua natureza: "Teresa, se a lei for olho por olho, acabamos num mundo de cegos!"*. Não resultou, a Teresa afastou-se zangada e o mundo de Maria ficou mais solitário.

Maria sabia que se de facto fosse como gostaria de ser não teria a vida que tinha, teria ido para Calcutá, adoptaria vinte crianças tristes ou passaria o dia a ajudar doentes solitários; assumia o seu egoísmo tentando, dentro dele, ser o melhor possível. O lamento de não ser o que gostaria convivia diariamente com ela, de forma que aprendera a ignorá-lo embora consciente da sua presença.

Maria era tranquila mas não espalhava tranquilidade, antes espalhava inquietação. Quando alguém lhe fazia notar que estava sol, instintivamente ela respondia: "- Mas além está a chover...". Se alguém morria ela lembrava-se dos bebés, se alguém nascia ela lembrava-se dos velhos; andava assim sempre em contra-ciclo, uma coisa muito irritante.

Toda a gente considerava Maria um rochedo, uma pedra firmemente ancorada que nada podia abalar e que por isso mesmo, era um cais seguro; ela própria se considerava assim. Não lembrava a ninguém nunca que alguma vez Maria necessitasse de ajuda, Maria e necessidade de ajuda eram naturalmente exclusivos, como o sol e a chuva... Maria era uma forasteira da vida, incólume, sem cor, alheia, sem cheiro ou ânsia.

Uma vez Maria balançou, num conjunto de circunstâncias que conseguiu a improvável combinação que premia o botão escondido; ninguém realmente percebeu a gravidade do balanço, embora percebessem a estranhíssima falta de tranquilidade. Os dias passaram, a tranquilidade voltou, os mais próximos sossegaram aliviados e só Maria se deu conta dos estragos. Tranquila novamente, colocou-os na mesma categoria das crianças tristes e por adoptar... Uma coisa mais a ignorar.

Maria não era simpática, bonita ou culta; era a sua capacidade de apreender os outros que os atraía magneticamente quando em necessidade e os afastava quando andavam felizes, nessa altura era desagradável a proximidade, dada a inquietação do contra-ciclo. Maria, tranquila, compreendia tanto a necessidade como o desconforto, compreendia a atracção e a repulsa. Maria era dos outros, não dela própria - um pequeno preço a pagar pela recusa em ir para Calcutá, era barato.

Tinha com ela outras presenças, gente que não necessitava dela, gente que sem ruído a acarinhava, pensava nela, dava-lhe prioridade, gente que sacrificava o natural egoísmo e comodidade por ela, gente que a Amava sem querer nada em troca. Maria dava por isto, sorria de vez em quando e tinha consciência de que os amava a eles também, com um amor entranhado que nada tinha a ver com o resto da sua vida... Mas Calcutá erguia-se durante a noite.

Houve um dia em que Maria, tranquilamente, armou um teatro de vida real; chamou nomes à Francisca, disse-lhe que tinha ficado à espera dela, que a sua ausência a tinha marcado, que a Francisca devia ter vergonha em magoar assim quem lhe queria bem e contava com ela; a Francisca, coitada, naquele arrazoado atacante e inesperado lá arranjou forças para remar a sua vida para a frente, considerou que a Maria era afinal um cais pouco seguro e seguiu.
Maria ficou contente e triste: contente porque a Francisca zarpou independente e com força, triste porque a liberdade da Francisca tinha sido adquirida por logro. Maria achava que a manipulação de pessoas era horrivelmente reprovável. "As pessoas", achava ela, "devem ser soberanas. Devem fazer sempre aquilo que querem, porque evolução significa que as pessoas querem as coisas certas. Tudo o mais é engano e decepção". Acreditava firmemente nisso, o que lhe revolvia o estômago e mordia a alma, quando sucumbia à tentação - tão fácil! - de manipular alguém. O estômago rugia, a alma fremia, escondia-se atrás da intenção pura mas tinha pesadelos com crianças de barriga grande e olhos ainda maiores.

Às vezes, a Maria ficava noite dentro a ver um filme de acção. Via o herói a deitar uma bomba e chorava (aquilo mata uns putos de certeza), via o polícia a prender o traficante e chorava (ninguém nasce assim, coitado do miúdo, sem mãe nem pai nem amigos), via o agente secreto a namorar uma bela e chorava (bolas que isto não é vida para ninguém, esta rapariga não sonhou com isto aos 12 anos, de certeza), via o sem abrigo a chamar nomes à polícia e chorava (em outras circunstâncias qualquer de nós podia ali estar!), via isto e aquilo, Calcutá rugia e ela chorava.
Por estas e outras, Maria só gostava de ver filmes sozinha, as suas lágrimas afligiam desnecessariamente os outros que nem compreendiam como ela depois, firmemente, ignorava tudo e retomava a sua tranquilidade inquieta.

Maria não tinha amigos, ninguém suportava durante muito tempo a sua inquietação. Ao fim de um tempo o contra-ciclo começava a cobrar paciência e tranquilidade aos outros e esse era o princípio do fim. Ela sofria de cada vez que constatava o facto - ao longo dos anos o abandono repetia-se sem que nunca quem se afastava se despedisse. Às vezes voltavam, fugidios, pois as Sortes tinham sido maldosas e ela era um Porto de entrada franca; mas era sempre uma hospedagem passageira de quem procura uma noite de sono seguro para prosseguir o seu caminho. Maria compreendia e triste, pagava o dízimo a Calcutá.

Já com muitos anos, Maria atirou-se da ponte. Até hoje, ninguém compreende tal loucura, uma balzaquiana tão tranquila! Houve burburinho, claro, gente a congeminar amores infelizes, humores, hormonas, segredos, menopausa, genética desiquilibrada... A ninguém ocorreu Calcutá. Quem chegou mais próximo foi um miúdo que mal a conhecia, ao dizer alto (as crianças podem não ter a noção do decoro mas têm a noção do óbvio) no funeral:

- Ó Mamã, não chores! Eu acho que ela estava sempre triste, agora já não está triste, isso é bom, não é?

É. Calcutá cobra as suas dívidas mas dívidas pagas são paz de espírito.

*Dalai Lama

08/02/2009

Cenas da vida (ir)real

Chovia a potes.
A água escorregava pela calçada, pelo jardim, pelas janelas e ia formando pequenas poças aqui e ali.
Com um suspiro, Margarida pegou no saco vazio das compras e virou-se para o marido:
- Vamos ao super então... Já são 11 horas e pelos vistos o tempo não vai permitir mais nada!

O pequeno supermercado estava atulhado de gente.
Pelos vistos, todos os vizinhos tinham tido a mesma brilhante ideia de aproveitar a chuvosa manhã de domingo para fazer as compras do almoço.

Após as voltas necessárias e com o cesto cheio, o marido dirigiu-se a uma caixa e ficou a aguardar a sua vez.

Margarida deixou-se ficar para trás, entretida com uns cartazes de promoção de bacalhau. Passado pouco tempo, dirigiu-se igualmente às caixas.

Agarrou-se ao braço do marido, e fez-lhe uma festa como tinha o costume, olhando ao mesmo tempo para o carrinho vizinho na fila, de um casal de velhotes compradores que olharam para ela embasbacados. Sem perceber qual a razão, Margarida levanta a cabeça e dá um grito.

O marido, não era o marido. Era um homem bastante mais velho, de mesma estatura e com um casaco da mesma cor. Que a olhava igualmente pouco à vontade...sem saber muito bem o que dizer.

Procurando o marido com os olhos, Margarida corre para ele, meio envergonhada, meio risonha, no meio das gargalhadas de quem estava na fila e que tinha percebido e acompanhado a cena.

Ela conta-lhe o sucedido, pois ele de nada se tinha apercebido, e o marido, brincalhão, ri-se e diz, para o velho homem que tinha sido confundido e que continuava a aguardar a sua vez na caixa mais adiante:
- Olhe, garanto-lhe que é uma mulher excelente. Mas para já, não lha posso dispensar.

E para ela, rindo-se:
- Se fosse eu que te tivesse confundido com outra mulher num supermercado que dirias tu?

E que julgam vocês que ela respondeu?

- Era o que mais faltava! Ficava furiosa obviamente! Até porque tu és muito mais alto do que eu, e vias-me logo de cima portanto não me podias confundir com ninguém! Eu quando olhei para cima vi logo que me tinha enganado!

Agora digam-me lá, se não é esta tirada uma pura maravilha do engenho feminino!
Toda e qualquer semelhança com pessoas da vida real não é coincidência.

07/02/2009

Cenário urbano


A porta do carro da frente abriu-se e uma jovem muito bem vestida e de botas com salto de agulha saiu furiosa e começou a insultar o condutor da frente; da boca bem pintada saíam palavrões dignos de um carroceiro irritado. O condutor da frente também saiu do carro, um homem maduro e com cara de poucos amigos.

A rapariga dos saltos de agulha deu um pontapé na roda do carro da frente e o homem avisou-a:

- Ó grande vaca, se pensas que eu não bato em mulheres, andas enganada!

Joana abanou a cabeça, atónita. O João riu-se.

- Achas que se vão pegar à pancada?
- Sei lá! Mas ela bem merecia...
- Mas é uma rapariga!
- E então?
- Tu eras capaz de me bater?!
- A ti não mas não é por seres rapariga, é porque não te portas assim.
- Queres dizer que se fosses tu ali à frente batias-lhe?
- Claro! Ela deu um pontapé no carro, não deu?
- Foi no carro, não foi no homem...
- É a mesma coisa.

O semáforo mudou de cor e imediatamente se fez ouvir a cacofonia das buzinas, protestando contra a cena que antes entretivera os condutores mas que agora lhes impedia a passagem e atrasava o destino.

Joana sentia um frio desagradável a escorrer pela espinha mas não disse mais nada. Não queria saber mais.